Na noite do dia 30 passado, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei (PL) 490/2007, que define o marco temporal para a demarcação de terras indígenas, por 283 votos a 155. Esse placar é uma retumbante derrota política e moral para o governo. Política porque Lula definiu a proteção dos interesses dos indígenas como uma de suas prioridades, a ponto de criar um Ministério só para cuidar disso; e moral, porque esse mesmo governo não moveu um músculo para articular uma base de apoio a fim de evitar um vexame como esse. E não o fez, é bom enfatizar, porque Lula, como já dissemos nesta página, só se interessa pela proteção ambiental e pela qualidade de vida dos indígenas na exata medida de suas ambições eleitorais.
A votação do PL 490/2007 foi apenas mais um evento de uma semana desastrosa para o Palácio do Planalto no outro lado da Praça dos Três Poderes. Há poucos dias, a Câmara já havia alterado substancialmente a Medida Provisória (MP) 1.154/2023, que reorganiza o primeiro escalão do governo federal. Na mesma noite em que o marco temporal foi aprovado, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), adiou a votação da MP, aumentando dramaticamente o risco de caducidade. O próprio arcabouço fiscal, tido tanto por Lira como pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSB-MG), como um item da “pauta País”, não da “pauta governo”, foi aprovado em termos bem diferentes do que o governo gostaria.
E isso tudo com menos de seis meses de governo – o que obrigou Lula a convocar uma reunião de emergência com seus articuladores políticos para entender o que se passa. Nem precisava: o problema central do governo, ao que tudo indica, é que o presidente escolheu deliberadamente alhear-se da realidade irrefutável de que foi eleito para impedir a continuidade de Jair Bolsonaro na Presidência, e não para implementar a raivosa e inconsequente agenda petista.
Lula age como se tivesse vencido a eleição somente com votos de petistas e que, uma vez na Presidência, todas as forças políticas convergiriam naturalmente para o demiurgo – que ademais se considera injustiçado e que vê neste novo mandato uma espécie de indenização que o País lhe devia pelos 500 e tantos dias na cadeia. Trata-se de um equívoco de múltiplas dimensões, que pode comprometer todo o exercício de seu terceiro mandato presidencial.
O presidente, a quem sempre se atribuíram muitos predicados políticos, mostra espantoso amadorismo ao ignorar que o espectro ideológico majoritário da sociedade brasileira ainda se inclina para uma direita conservadora, como está refletido na composição do Congresso. O eleitorado, por margem muito estreita, repeliu Bolsonaro porque rechaça o extremismo bolsonarista, e não por morrer de amores por Lula.
Ademais, diferentemente do que acontecia duas décadas atrás, no primeiro mandato de Lula, o Congresso dispõe de instrumentos para fazer valer suas vontades muitas vezes à revelia do Executivo. Ou seja, o presidente deve ser ainda mais aberto ao diálogo e à negociação, aceitando o fato de que tem menos poder para ditar a agenda do País e que, por isso, deve se entender com as lideranças desse Congresso em que o governo é gritantemente minoritário.
Em certa medida, democracias funcionais rejeitam os extremos e obrigam os governantes a caminhar para o centro, a despeito da eventual virulência do discurso nas campanhas eleitorais. No Chile, por exemplo, o presidente esquerdista Gabriel Boric foi muito perspicaz ao direcionar seu governo para posições centristas, depois de ter malogrado na tentativa de reescrever a Constituição do país, entre outras ações, levando em consideração apenas os interesses das forças políticas que o conduziram ao poder. Lula é bem mais experiente que Boric, mas talvez tenha o que aprender com o jovem colega chileno.