Mas seu périplo havia começado anos antes, quando ele morava nos Emirados Árabes Unidos, e a guerra na Síria estourou, em 2011.
Decidido a não voltar a seu país, onde seria obrigado a se alistar ao serviço militar e lutar no conflito, ele enfrentou as consequências de sua decisão — quando seu visto de trabalho expirou, ele perdeu o emprego e viveu cinco anos ilegalmente em Abu Dhabi como sem-teto.
Em entrevista à jornalista Emily Webb, do programa de rádio Outlook, da BBC, Hassan conta como foi parar na Malásia e finalmente conseguiu asilo no Canadá, onde mora atualmente.
Hassan Al Kontar é de uma cidade chamada Al-Suweida, no sul da Síria, onde cresceu junto aos dois irmãos em uma família drusa (minoria religiosa).
Ele acredita que o pai, um engenheiro mecânico "viciado em política", nas suas palavras, teve grande importância na sua formação.
"Ele pegava um livro e lia para mim, e começávamos a discutir política, história, cultura, qualquer coisa."
"Acho que ele sabia de alguma forma quando eu era criança que a vida seria dura comigo e que eu iria enfrentar algumas situações difíceis. E por isso ele me preparou desde pequeno."
"Ele era minha janela para o mundo", resume.
Após cursar três anos de direito na Universidade de Damasco, Hassan decidiu expandir seus horizontes.
"Sentia que minhas opções eram limitadas na Síria. Meu sonho sempre foi fazer jornalismo, escrever. Mas sabia que esse tipo de coisa não tinha futuro na Síria."
Além disso, ele não queria se alistar no serviço militar. E há uma lei na Síria que determina que se você terminar os estudos e não for o único filho da família, é obrigado a se alistar.
A única maneira de escapar do serviço militar obrigatório é se você estiver fora do país - neste caso, você precisa enviar um documento para comprovar, além de pagar uma quantia fixa ao governo sírio.
Hassan embarcou então para os Emirados Árabes Unidos em 2006 com um visto de trabalho e conseguiu emprego em uma companhia de seguros de Abu Dhabi.
De lá, ele assistiu pela televisão ao início dos protestos na Síria, em março de 2011, repreendidos com violência pelo regime de Bashar al-Assad, que culminaram na guerra civil que já dura mais de 10 anos no país.
"Eu ligava para minha família de hora em hora. Ligava para meus amigos na Síria. Eu sei que uma vez que o sangue começa (a ser derramado), é muito difícil parar."
O irmão que estava com ele nos Emirados Árabes decidiu voltar um mês antes da guerra começar — e foi convocado para o Exército.
"Estávamos todos preocupados com meu irmão, com o que iria acontecer."
"Tudo o que a gente podia fazer era continuar assistindo ao noticiário, continuar checando o Facebook, e às vezes ler as listas de mortos, rezando por dentro para que o nome do meu irmão não estivesse entre eles. Chegava a suar e tremer", relembra.
Diante de tudo isso, Hassan estava decidido a não voltar mais para a Síria.
"Eu sabia que não tinha nascido para isso. Não quero matar ninguém. Não estou aqui para destruir. E não queria fazer parte de uma máquina de matar", explica.
Além disso, ele decidiu que não financiaria o conflito, deixando de pagar a taxa devida pela não prestação do serviço militar — que havia sido reajustada de US$ 3,5 mil para US$ 8 mil quando a guerra começou.
"Eu não tinha esse dinheiro de qualquer maneira. Mas mesmo se tivesse, não financiaria esse regime."
Com esta decisão, seu destino estava sacramentado.
"A partir daquele momento, eu estava na lista de procurados. O que significa que se eu botasse o pé no aeroporto de Damasco, não seria capaz de chegar em casa. Eles iriam me deter no aeroporto e me mandariam para a linha de frente (do conflito) após algum treinamento."
Não demorou muito para Hassan começar a sentir as consequências de sua decisão — ele não conseguiu renovar seu passaporte, e seu visto de trabalho expirou. Por causa disso, perdeu o emprego e ficou sem condições de pagar o aluguel.
Em poucos meses, estava vagando sem-teto pelas ruas, se escondendo das autoridades porque estava ilegal no país.
"Eu tinha uma boa carreira, estava crescendo na carreira, meus sonhos eram grandes. De 2006 a 2011, eu dava ingenuamente as coisas como certas", diz ele. "De repente, me vi com minha mala na rua, no meio da noite, fazia 45 graus, sem lugar para ir, me escondendo da polícia e da imigração, sem visto de trabalho válido, sem passaporte válido, sem ter para onde ir..."
"Lembro que naquela noite fui a uma das torres, e havia as escadas. Naquele tipo de prédio, ninguém usa escada, porque tem os elevadores, e eu vi aquilo como um santuário. Dormi por uma hora ou duas. E foi aí que minha tragédia começou", revela.
Esta escada se tornaria um refúgio habitual para Hassan. Mas sempre que ouvia um barulho ou alguém se aproximando durante a noite, ele se levantava rapidamente e fingia estar a caminho de algum lugar.
"Perdi a sensação de estar seguro, e essa é a coisa mais preciosa. As pessoas que estão seguras em suas casas agora não pensam nisso, dão como algo certo, e não é."
Houve momentos em que ele conseguia dormir na casa de um amigo ou arranjar algum tipo de trabalho. Mas sem visto, era arriscado para ele e para os empregadores — por isso, não conseguia trabalhar com frequência.
Por volta de 2013, Hassan conseguiu um carro por meio de um amigo que trabalhava em uma locadora. E começou a viver nele.
"Para mim, um carro não é um meio de transporte de A para B. Para mim, é um caixão de ferro. Você não tem ideia de como é a sensação de estar dentro de um carro fazendo 50 graus durante a noite."
"Às vezes, eu me deitava à noite em frente à porta de uma mesquita porque a fresta da porta deixava passar um pouco de ar fresco no verão", relembra.
Até que em 2016, após mais de cinco anos nesta situação, se escondendo da polícia e da imigração, Hassan foi detido.
"Era 1h da manhã. E eu estava estacionando em frente a um supermercado porque tinha wi-fi grátis e queria mandar mensagem para minha família. Até então era apenas mais um dia normal, quando começaram a bater na minha janela. E eu sabia que o que estava me esperando, finalmente tinha acontecido."
"Dei a eles minhas mãos e foi a primeira vez que fui algemado. Eles me escoltaram, e eu sabia que era o começo do fim, que eu seria deportado."
No centro de detenção, ele conta que passou "um dos períodos mais assustadores" da sua vida — já que um provável desfecho era ser deportado de volta para a Síria.
"Eu sabia que havia uma pequena esperança, que me recusava a perder, de me deportarem para outro lugar."
"(Mas) lembro de mim no centro de detenção de Abu Dhabi, andando o tempo todo até não sentir mais meus pés, porque não conseguia dormir, porque temia que me mandassem de volta para a Síria."
Ao mesmo tempo, Hassan estava preocupado com o pai, que havia sido diagnosticado recentemente com câncer. E, enquanto estava sob custódia, descobriu que ele havia falecido.
"Algo dentro de mim se partiu, e não vai voltar (ao normal) depois disso. É um tipo de tristeza que você sabe que nunca vai te deixar", desabafa. "Só eu sabia o quanto queria que ele fosse feliz, o quanto eu estava lutando por um futuro diferente para todos nós, e havia fracassado nisso tudo."
Mas a sorte acabou se voltando a seu favor. Hassan conseguiu um novo passaporte, e acabou convencendo as autoridades dos Emirados Árabes a deportá-lo para a Malásia, em vez da Síria.
A Malásia é um dos poucos lugares do mundo que permite que os sírios entrem no país sem visto, mas limita sua permanência a 90 dias.
Ele desembarcou em Kuala Lumpur em 2017, e começou a pesquisar que países poderiam aceitar seu pedido de asilo, o que não era o caso da Malásia.
Depois que o prazo de 90 dias expirou, ele tentou ir para o Equador — sua mãe e irmã venderam os cordões de ouro que tinham para ele poder comprar a passagem. Mas o funcionário da companhia aérea não deixou que ele embarcasse.
"Ele não disse por quê. E foi aí que todo o meu mundo começou a desmoronar."
O outro país que poderia aceitá-lo era o Camboja. E com o dinheiro que havia sobrado, Hassan conseguiu comprar uma passagem e embarcar para Phnom Penh.
No entanto, ao desembarcar no aeroporto, não foi autorizado a entrar no país, e o enviaram de volta para a Malásia no mesmo voo. Ele tampouco sabe por quê.
"Esse também foi um dos momentos mais difíceis da minha vida."
"Eu sabia que estava sem opções. Na Malásia, eu estava na 'lista proibida', e eles não iam me permitir entrar", conta Hassan, se referindo à sanção por ter permanecido no país além do prazo de 90 dias.
"E essa foi a última vez que vi meu passaporte pelos próximos nove meses. Depois disso, meu passaporte ficou sob controle deles. As autoridades do Camboja entregaram meu passaporte às autoridades da Malásia, e fiquei sem passaporte e apátrida."
Hassan desembarcou de volta no Aeroporto de Kuala Lumpur derrotado. E se viu sem ter para onde ir, confinado à área de desembarque.
"Eu não sabia naquele momento que aquela área seria minha casa pelos próximos sete meses."
Logo que chegou, contou com a ajuda de dois egípcios que estavam numa situação parecida. Eles apresentaram o local para ele, mas pouco tempo depois partiram - e Hassan ficou sozinho.
Inicialmente, ele dormia nas cadeiras do aeroporto. "Eu tirava umas sonecas nas cadeiras, às vezes de meia hora, uma hora, depois acordava, dormia mais meia hora..."
"Depois encontrei um lugar embaixo da escada rolante, que tinha um pouco de privacidade. Mas por causa da segurança lá, eles vinham me acordar, para conduzir uma investigação ou para me tirar de lá e voltar para as cadeiras."
Mas o desconforto das cadeiras era só uma parte do problema na hora de dormir.
"Era muito desagradável, porque tinha anúncio de voo (nos alto-falantes) o tempo todo. E, de alguma forma, durante a história, o ser humano decidiu fazer aeroportos muito frios. Fazia muito frio. E as luzes ficavam acesas o tempo todo", relembra.
A alimentação ficava por conta da Air Asia (tecnicamente ele ainda era seu passageiro), que fornecia a ele três refeições por dia. Mas o prato era sempre o mesmo: frango com arroz.
"Mesmo que você coma no melhor restaurante de Londres, Paris ou Nova York a mesma refeição três vezes ao dia, durante sete meses, você vai ficar enjoado."
Para tomar banho, ele usava o banheiro para pessoas com deficiência na madrugada. Ele conta que os funcionários da limpeza eram seus únicos amigos no aeroporto, e o ajudaram numa missão importante: comprar café.
"Um deles falava um pouco de inglês, os outros não, e ele não tinha ideia do que significava Starbucks, porque eles tomam o café local. Então entrei no Google, baixei a logo do Starbucks, mandei para ele no Whatsapp e escrevi em um pedaço de papel o nome do café que eu gosto. Mostrei no Google Maps onde ficava, que era um andar acima do meu, e ele encontrou."
Hassan estava ficando sem dinheiro e precisava de assistência jurídica, então decidiu usar as únicas armas que estavam a seu alcance — seu telefone celular, o wi-fi do aeroporto e sua história.
Ele começou enviando e-mails para ONGs, depois para embaixadas estrangeiras em Kuala Lumpur e figuras públicas. Mas, segundo ele, não estava funcionando.
"Foi quando eu disse: Agora, vou adotar o estilo americano, vou fazer um pouco de barulho."
Hassan mal havia usado rede social antes — até então, ele tinha postado apenas um tuíte e nenhuma presença no Instagram.
Mas, após 20 dias confinado na área de desembarque, ele resolveu postar um vídeo sobre sua situação no Twitter, que viria a ser o primeiro de uma série.
"Minha história se resume a perguntas e encontrar as respostas para essas perguntas. Uma das principais perguntas que fiz foi: Será que fariam o mesmo se eu tivesse um passaporte dos EUA, Canadá, Europa ou Austrália? Eu sabia naquela época que não."
"Eu não era mais Hassan, o indivíduo, era Hassan, o refugiado sírio. E daquele ponto em diante, não era uma história pessoal. Era a história do meu povo."
Desde o início, seus diários em vídeo ajudaram a conectar sua situação pessoal à crise mais ampla que até hoje afeta milhões de refugiados sírios.
"Eu só quero explicar ao mundo como é ser sírio — ser solitário, fraco, indesejado, rejeitado, odiado. Ninguém está nos aceitando", disse ele em um dos vídeos.
Inicialmente, as postagens não tiveram muita repercussão. Mas, aos poucos, começou a despertar o interesse das pessoas e também da imprensa.
"No 35º dia, eu dei um Google no meu nome e encontrei três resultados, dois deles estavam linkados aos meus próprios tuítes. Até que no 38º dia, eu dei uma busca novamente, e apareceram 27 mil resultados", relembra.
A história de Hassan havia ganhado as manchetes dos principais jornais ao redor do mundo.
"Foi quando minha família soube que eu estava preso no aeroporto. Eles ficaram sabendo pelo noticiário."
Hassan havia se tornado uma figura conhecida no terminal, e não era raro receber pedidos de selfies de passageiros que desembarcavam no aeroporto.
"Até as autoridades diziam: 'Ah, você é uma celebridade agora.' E eu respondia: 'Não sou uma celebridade, sou mais um animal de zoológico'. As celebridades têm seus próprios jatos, não ficam presas no aeroporto."
"Eu não estava fazendo piada. Algumas pessoas tiravam fotos minhas sem sequer se aproximar de mim para dizer oi. Eu via ambos os lados do ser humano, o bom e o mau, o que é fascinante."
Até que sua história chamou a atenção de um pequeno grupo no Canadá, que se empenhou em buscar asilo para ele no país.
"Até aquele momento, eu não era capaz de sonhar com o Canadá nem no meu sonho mais louco, não podia ousar sonhar com o Canadá. Então o advogado canadense estendeu a mão para mim, reuniu voluntários e comecei a voltar a ter esperança, porque eu sabia que era o que precisava para vencer o sistema."
Mas, após sete meses vivendo no terminal, seu pior pesadelo se tornou realidade. Hassan foi preso pela polícia malaia e levado a um centro de detenção.
Sem o celular e os óculos, de que ele precisa para enxergar qualquer coisa a meio metro à sua frente, ele ficou completamente isolado do resto do mundo por dois meses.
Até que um guarda informou que ele seria enviado para casa na semana seguinte - e Hassan supôs que ele estava se referindo à Síria.
"Eu fiquei apavorado naquele momento", diz ele.
Mas para seu alívio, acabou sendo esclarecido que seu destino seria, na verdade, o Canadá.
"Eu podia sentir minha alma dançando dentro de mim", recorda."Fiquei de pé ao lado da barra de ferro a manhã inteira, esperando que chamassem meu nome para me escoltar até o aeroporto."
A bordo do avião com destino ao Canadá, Hassan conseguiu finalmente tomar uma xícara de café sem percalços - ainda sem acreditar que estava realmente naquele voo.
"Foi quando olhei pela janela do avião e vi meu pai pela primeira vez. Ele finalmente estava orgulhoso do que eu estava fazendo, de quem havia me tornado, de quem me tornei depois da temporada no aeroporto."
"Não é uma história única, todos os sírios, milhões de sírios estão passando por situação semelhante, mas a forma como lidei com isso é o que me deixa orgulhoso. Representar meu povo, falar sobre eles serem capazes de desafiar o sistema, um sistema falido, foi o que me deixou orgulhoso."
Hassan hoje vive em Vancouver, no Canadá, onde trabalha para a Cruz Vermelha. Ele escreveu um livro sobre sua experiência chamado Man at the Airport ("Homem no aeroporto", em tradução literal).