Rosimeris Cardoso da Rosa, 33 anos, é obesa. Ela ama seu corpo, mas a relação nem sempre foi assim. Há cerca de seis anos, a gaúcha de Sapucaia do Sul buscou uma clínica de emagrecimento pelo que, na época, considerou uma vontade própria, mas hoje atribui à pressão estética da sociedade. Nos três meses de tratamento nutricional, a dona de casa seguiu à risca uma dieta tão restritiva que a deixou fraca a ponto de não conseguir praticar exercícios físicos.
Suas refeições se limitavam a modestas porções de saladas e proteínas. Doces, nunca mais; os carboidratos, uma raridade. Em pouco tempo, perdeu sete quilos. Mas os problemas de saúde vieram na mesma velocidade do emagrecimento. A imunidade baixou e gripes e viroses chegaram em sequência. “De que adianta estar magra e doente?”, ela questiona agora. Tão logo a nutricionista liberou adições à dieta, os quilos perdidos retornaram, um roteiro que se repete na grande maioria das dietas radicais.
Algo intrigava Rosimeris, porém. Seus exames de rotina apresentavam bons resultados, e ela não tem doenças metabólicas tipicamente relacionadas à obesidade, como diabetes, hipertensão e colesterol alto. No último check-up, em dezembro, a única coisa fora do lugar era uma contagem baixa de vitamina B12, o que sua médica associou não ao peso, mas ao pós-parto – ela é mãe de Théo, 1 ano.
“Sempre que tive motivações para emagrecer, foram puramente estéticas, não relacionadas à saúde”, admite. E, por sorte, nenhum médico chegou a pedir que ela perdesse peso como forma de corrigir algum problema imediato. Rosimeris é um caso raro em que a ideia de saúde não foi reduzida apenas ao que a balança marca. Mas nem todos os pacientes são tratados assim.
Rosimeris tem aquilo que os especialistas chamam de obesidade metabolicamente saudável, quando uma pessoa acima do peso preconizado como “ideal” para sua estatura – considerando o índice de massa corporal (IMC), relação entre a altura e o peso – não apresenta nenhum dos outros problemas que costumam estar associados a isso.
O conceito é controverso, e muitos pesquisadores ao redor do mundo se debruçam sobre o assunto. O desafio é desvendar as razões por que algumas pessoas conseguem manter a saúde a despeito dos quilos extras. Isto é, se confirma a condição proposta pelo cientista norte-americano Lindo Bacon como “health at every size”, ou saudável em qualquer tamanho?
Uma das cientistas mais dedicadas ao tema é Ruth Loos, diretora do programa de Genética da Obesidade da Escola Icahn de Medicina, do Sistema de Saúde Mount Sinai, em Nova York. Em entrevista a CLAUDIA, ela admite: “Nós ainda não estamos mais próximos de uma maneira universalmente aceita para definir a obesidade metabolicamente saudável”. E segue: “Estima-se que de 15% a 45% dos obesos são considerados metabolicamente saudáveis, apesar da adiposidade em excesso. Em contrapartida, nem todos os indivíduos com peso normal estão protegidos de doença metabólica”.
É o outro lado da moeda. A obesidade metabólica de peso normal afeta entre 6% e 30% da população e – você deve ter desconfiado – também é um conceito ainda muito discutido. Apesar da falta de consenso, uma coisa é certa: é preciso atualizar as noções do que é ser saudável, o que implica em rever também o estigma em torno da obesidade.
Em linhas gerais, a obesidade metabólica com peso normal ocorre quando uma pessoa que seria considerada magra ao se analisar puramente o IMC apresenta problemas geralmente associados aos quilos extras. “Para pessoas com peso normal, os riscos podem passar despercebidos e só aparecer, de forma fatal, bem mais tarde”, aponta Ruth. O fenômeno revela um dos perigos de só se prestar atenção no peso, uma obsessão médica que afeta inclusive os magros.
Daí a importância de manter os exames em dia. É recomendado fazer pelo menos um check-up anual e prestar atenção ao histórico familiar. Se você tem parentes que sofreram com problemas cardiovasculares, diabetes ou colesterol alto, vale monitorar regularmente como o corpo vai, independentemente do peso.
Essas duas condições – a obesidade metabolicamente saudável e a obesidade metabólica de peso normal – estão na literatura científica desde, pelo menos, a década de 1980, mas foi só nos últimos anos que os pesquisadores começaram a esmiuçá-las para valer. Como boa parte do conhecimento sobre o tema é muito recente, sobram incertezas na hora de estabelecer critérios de classificação e definir o que, exatamente, enquadra uma pessoa nesses condições. Até por isso, as porcentagens de prevalência acabam tendo tanta amplitude e sendo incertas.
Enquanto os debates avançam, o peso – sempre ele – continua sendo um dos principais indicadores para saber se uma pessoa tem propensão a desenvolver outros problemas no futuro, mas cada vez mais experts defendem que ele não seja o único fator considerado. “Do ponto de vista metabólico, depende da forma como a obesidade se apresenta no indivíduo. O maior risco está naqueles com muito acúmulo de gordura na região abdominal”, pontua a endocrinologista Cintia Cercato, professora da Universidade de São Paulo (USP).
“Também existem pessoas com obesidade generalizada, uma gordura subcutânea que acaba evitando o chamado depósito ectópico, quando o excesso se acumula em outros órgãos”, destaca Cercato, que preside a Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (Abeso). Não é que a gordura em si seja boa, mas a forma como ela se deposita acaba impedindo que sua ação se torne mais danosa.
Nesses casos, a gordura funcionaria como uma espécie de “tampão”, protegendo temporariamente partes sensíveis do corpo, o que ajudaria a evitar problemas mais graves. A grande encruzilhada em termos de saúde é que, muitas vezes, isso tem um limite – e o momento exato em que essa virada ocorre ainda é um mistério, pois varia para cada pessoa.
“Os principais dados que temos hoje mostram que, com o passar dos anos, a maioria das pessoas que eram metabolicamente saudáveis deixam de ser. A gordura subcutânea em algum momento satura e passa a se depositar ectopicamente, ou seja, nos órgãos”, alerta Cintia. Com isso, surgem as doenças.
Essa é uma realidade bem conhecida pela estudante de publicidade Esther Bredow Schmitz, 21 anos, de Porto Alegre. “Sempre fui uma criança gorda, desde a primeira infância”, conta. Quando procurava ajuda para alguma questão de saúde, o roteiro se repetia. Mesmo sem problemas metabólicos nos check-ups realizados a cada seis meses, seguindo uma dieta saudável e com longo histórico nos esportes, ouvia a recomendação de perder peso como a solução para os mais diversos problemas que ela pudesse ter.
Para uma alergia na perna, um clínico geral recomendou que Esther emagrecesse, mesmo sem fazer qualquer exame físico da área afetada. Para manchas no rosto, uma dermatologista salientou a urgência de aliviar a balança. Os clínicos, aliás, se recusavam a encaminhá-la a outras especialidades, garantindo que tudo passaria com uma redução de peso. “A gordofobia médica é muito recorrente e acontece em todo tipo de especialidade”, lamenta.
Dos 4 aos 14 anos, Esther fez um acompanhamento nutricional repleto de dietas restritivas que, em vez de ajudá-la a emagrecer, causavam muito estresse. E, por causa disso, não funcionavam. Questões psicológicas pessoais eram agravadas pela pressão em relação ao peso, levando a estudante a episódios de compulsão alimentar, provocando um círculo vicioso. “É bem comum pessoas que já passaram por gordofobia médica terem restrição de ir ao médico. Acho que acabamos fazendo o movimento contrário. A gente quer ter saúde, mas ficamos com medo do que encontraremos ao buscar ajuda”, desabafa Esther.
Para a nutricionista Marina Michelon Stuani, de Caxias do Sul (RS), especializada em comportamento alimentar, pessoas gordas, magras ou com qualquer tipo de corpo podem ter comportamentos iguais. “O atendimento a uma pessoa obesa deveria ser o mesmo de uma pessoa que não tem sobrepeso: ouvir as queixas, respeitar o indivíduo”, defende.
Só então o profissional deve estabelecer uma estratégia – e, muitas vezes, não adianta focar em uma perda rápida de peso, pois a nova rotina acaba se tornando insustentável e, como no caso de Esther e Rosimeris, pode levar a problemas novos e mais graves. Marina conta que os profissionais de saúde já carregam consigo seus próprios preconceitos, o que explica parte desse comportamento gordofóbico.
Ela acredita que, para atender a população obesa de forma completa e sem julgamentos, é preciso primeiro rever a mentalidade que reduz a saúde ao peso e o tratamento, a dietas. Diferentes estudos mostram que, quando o foco é simplesmente uma perda rápida de peso, em mais de 90% dos casos a dieta acaba fracassando – e os quilos inicialmente deixados para trás são recuperados em até cinco anos.
Para ir além da obsessão pelo peso, os cientistas seguem tentando compreender as características das pessoas com obesidade metabolicamente saudável – e como (e até que ponto) elas conseguem permanecer dessa forma. Há uma década, o grupo de estudos do qual Ruth Loos faz parte descobriu, pela primeira vez, uma possível relação entre alguns genes que predispõem à obesidade e outros que reduzem os riscos tipicamente associados a ela.
No início de 2021, Ruth e seus colegas publicaram um estudo catalogando 62 variantes genéticas associadas à maior presença de gordura e, ao mesmo tempo, a menores riscos cardiovasculares e metabólicos. “Com o tempo, esperamos que alguns dos genes que identificamos possam contribuir para produzir medicamentos capazes de prevenir o desenvolvimento de condições cardiometabólicas em pessoas com obesidade”, fala a pesquisadora belga.
Mas mesmo quem tem essa vantagem genética em relação à gordura ainda pode apresentar outras complicações por causa do peso elevado que não tenham a ver com metabolismo, como artrose e problemas de mobilidade. É por isso que os especialistas nunca vão deixar de receitar uma dieta equilibrada e uma vida menos sedentária – para todo mundo. “Pessoas magras mas sedentárias podem ter maior risco cardiovascular do que pessoas obesas que são ativas fisicamente”, diz Cintia. “A recomendação não deve ser feita olhando para o número da balança, ela vale para todos”.