Um Tom Jobim preocupado com o imperialismo americano na cultura do Brasil, com o "fim" da música brasileira e tentando reaprender a usar a liberdade após anos de repressão e censura da ditadura militar.
Esses são algumas dos temas de uma entrevista dada pelo compositor brasileiro à BBC News Brasil em junho de 1986, quando se preparava para uma temporada de shows em capitais europeias, Estados Unidos e Japão.
A BBC News Brasil recuperou a entrevista nesta semana que marca 30 anos da morte do compositor — considerado um dos mais importantes da história da música brasileira e um dos principais nomes da Bossa Nova.
"O que eu noto e o que eu tentei chamar a atenção foi o seguinte: a música brasileira, que ia muito bem, de repente acabou, né? Hoje estamos respirando um pouquinho, né? Um clima de maior liberdade", diz Tom Jobim a Eduardo San Martin, jornalista da BBC, na gravação de 1986 — apenas um ano e três meses após o fim do governo de João Figueiredo, o último da ditadura brasileira.
Naquele ano, Jobim — que estava com 59 anos — havia recém se casado com a fotógrafa Ana Beatriz Lontra, sua última esposa, com quem teve os filhos João Francisco Jobim (1979–1998) e Maria Luiza Helena Jobim (que viria a nascer em 1987). Ana e outro filho de Tom, Paulo Jobim, participaram da turnê, tocando e cantando com o compositor.
No ano seguinte, Jobim lançou o disco Passarim, com muitos dos músicos usados na turnê de 1986.
Ouça acima em áudio a entrevista com Tom Jobim. Trechos de músicas da transmissão original foram cortados, por questão de direitos autorais.
E confira abaixo alguns dos tópicos da entrevista de Tom Jobim à BBC Brasil.
Tom Jobim diz que a cultura brasileira pagou um preço alto por causa da ditadura militar (1964 a 1985) — anos em que os artistas precisavam submeter suas obras a órgãos governamentais de censura prévia.
"A repressão foi muito grande não só na música. No cinema, na literatura, no teatro na música, em todos os setores. Você viu que os artistas foram perseguidos, se afastaram. Alguns se exilaram. Eu fui para os Estados Unidos. O Chico [Buarque] foi para a Itália. Caetano [Veloso] e o [Gilberto] Gil foram para Londres", disse Tom Jobim, à BBC Brasil.
"Eu acho importante que você possa trabalhar no Brasil. Fazer as coisas com liberdade, sem ter o telefone gravado. Isso tudo cria um clima sufocante."
Em outros depoimentos ao longo de sua vida — como em uma entrevista ao programa Roda Viva em 1993 — Jobim falou que não chegou a ser preso pela ditadura militar, mas que foi "convidado, intimado e intimidado" a comparecer em delegacias.
"Eu logo falei com o general ou com o delegado e esclareci que eu não era comunista, era pianista. Eu falei que gostava muito de ar refrigerado e uísque, e que a carceragem não seria um lugar ideal."
À BBC, em 1986, Jobim falou em tom sério sobre o efeito da ditadura na cultura brasileira: "É uma coisa assustadora. O fio da cultura brasileira foi destruído, foi quebrado de repente. Esse negócio de cultura virou pecado."
Ele diz que a censura foi mais em relação à política das pessoas, do que em relação a seus costumes.
"Houve uma certa licenciosidade na cultura brasileira com relação aos jovens. Nesses anos de autoritarismo, sexo, droga, tudo isso ficou bastante liberado. O que não ficou liberado é o pensamento", diz Jobim.
"Eu acho que liberdade é um troço maravilhoso. E eu acho que o jovem não deve se drogar, não deve se matar, vestido de vermelho na motocicleta. Ele deve sobreviver, amar fazer as coisas boas. Eu acho uma coisa preciosa você poder viver e ser feliz. É claro que a gente tem vontade de se embriagar algumas vezes, mas vamos ver se a gente não morre, né?"
Tom Jobim também diz que a ditadura prejudicou os artistas duplamente: além de terem suas obras censuradas e serem perseguidos, o regime colocou a imprensa nacional contra a classe artística.
"Desde 1964, como ficou impossível falar mal dos militares, da polícia, dos presidentes, dos ministros, então os jornais falaram mal dos artistas. Você compra o jornal e toda semana tem um sujeito esculhambando os artistas. É um negócio trágico esse troço. E ninguém está falando de arte, não. Eles falam de milhões de bobagens, de dinheiro. Como se a vida do artista estivesse orientada pelo dinheiro."
"Essa questão sempre existiu, acho que antes de eu nascer já devia ter existido esse imperialismo cultural. Podia no princípio nem ser imperialismo. O Brasil é um país de coisas importadas. Nós importamos tudo. Nós mesmos somos importados — essa máquina, esse microfone. E quando não é importado, é uma cópia da importação, pela qual se paga royalties", diz Tom Jobim.
"Eu nunca falo sobre esses assuntos de imperialismo cultural. Por exemplo, nós estamos todos escravos do DX7 [instrumento da Yamaha], dos 'synthesizers' (sintetizadores de música). Mil aparelhos com mil nomes, 'emulator', etc. Então você tem um problema de que mesmo que você toque uma música brasileira, o instrumento precisa ser importado. Você tem que aprender um troço que é feito num outro lugar. O instrumento quebra e você não tem quem conserte."
"É um problema isso. Eu, por exemplo, não sei por que que não me mudei para os Estados Unidos. A gente teria ficado lá e quando alguma coisa quebra o cara conserta na hora", diz Tom Jobim.
"Tem sempre essa cisma de voltar para o Brasil. Essa coisa de fazer um pouquinho mais de música brasileira."
"O que você faz aqui nas companhias brasileiras — que não são brasileiras, são multinacionais — se apaga. O que você faz em Nova York, fica. Você faz um disco em Nova York e esse disco vai para o Japão, para a Austrália, para a Europa toda. Você faz um disco aqui [no Brasil], e ele fica limitado aqui."
Tom Jobim também fala sobre uma polêmica antiga em relação à música brasileira: Bossa Nova é samba com influência do jazz? Ou Bossa Nova é a música brasileira influenciando o jazz?
"O que acontece com o negócio do jazz, que deu grande confusão, é que o americano chama de jazz tudo que balança", diz Jobim.
"Isso confundiu uma geração inteira de críticos puristas aqui no Brasil que ficaram dizendo que o Pixinguinha é jazz, que o João Gilberto é jazz, que o Tom Jobim é jazz. É jazz se você chamar tudo de jazz."
"O americano é abrangente, ele é aquisitivo. Ele quer comprar tudo: o bolero mexicano, o ritmo cubano."
"Americano manda o sujeito aqui para estudar 20 tipos de samba diferente e depois eles vão tocar esse sambas lá e nós vamos acabar copiando os sambas. É aquele negócio: nós vamos acabar estudando no livro americano os passarinhos brasileiros, que eles vieram aqui e fotografaram direito."
"Eu quero esclarecer. Eu não acho que fronteira seja um troço importante. Urubu passa por cima de fronteira sem passaporte, sem passagem de avião, sem nada."
"O fato de você dizer isso aqui é de São Paulo, isso daqui é do Rio. Eu acho isso uma bobagem. O planeta está cada vez menor, o avião anda cada vez mais depressa e a cultura naturalmente miscigena. Há é uma mistura."
"Eu não sou contra nenhum tipo de música. Porque também as pessoas querem sempre dar nome às coisas. E dar nome às coisas prejudica a compreensão. Você chama Maria de Maria e pensa que conhece Maria, mas Maria é só um nome. Você não conhece Maria."
"A atitude purista do Brasil é 'deixa para lá'. E a atitude deles é 'venha a nós'. Então para um a atitude é positiva, do rico, da aquisição. Para o outro a posição é: você faz um troço lindo, mas no momento em que o americano toca o cara diz que aquilo é americano. Então é uma doação eterna."