Na opinião de Lula, todas as inúmeras denúncias de violações de direitos humanos, de manipulação das eleições e de perseguição a dissidentes e jornalistas naquele país não passam de “narrativa que se construiu contra a Venezuela”. Lula então sugeriu ao “companheiro Maduro” que “construa a sua narrativa”, que “será infinitamente melhor do que a narrativa que eles têm contado contra você”.
“Eles”, no caso, são os “nossos adversários”, conforme Lula chama aqueles que “vão ter que pedir desculpas pelo estrago que eles fizeram na Venezuela”. Encabeçam essa lista os Estados Unidos e a União Europeia, que impuseram sanções contra o regime chavista por conta das atrocidades cometidas por Maduro. Na “narrativa” de Lula, americanos e europeus simplesmente “não gostam” de Maduro, por puro “preconceito”, e por isso resolveram inviabilizar o governo chavista – e as agruras dos venezuelanos, com hiperinflação, escalada da miséria e da fome e êxodo de 7 milhões de cidadãos em poucos anos, seriam resultado das sanções internacionais, e não da ruína do país promovida pelo chavismo.
Não há dúvidas de que o Brasil deveria restabelecer relações com a Venezuela, grosseiramente rompidas, por razões puramente ideológicas, pelo governo Bolsonaro. Exportamos para o vizinho cerca de US$ 1 bilhão e importamos quase US$ 500 milhões. Ambos compartilham mais de 2 mil km de fronteira na Região Amazônica, delicada tanto do ponto de vista ambiental quanto em razão do narcotráfico. Cerca de 20 mil brasileiros vivem na Venezuela, e, entre imigrantes e refugiados, há mais de 300 mil venezuelanos no Brasil.
Nada disso significa, no entanto, que o Brasil deva ignorar que a Venezuela é hoje talvez a mais violenta ditadura da América Latina, só rivalizando com a da Nicarágua – outro país governado por um “companheiro” de Lula, o ditador Daniel Ortega. Não se espera que Lula saia por aí a denunciar os crimes desses tiranos, mas se espera, sim, que ele não insulte a inteligência alheia nem os venezuelanos que padecem horrores sob as patas de Maduro ao declarar que na Venezuela vigora uma democracia plena e que, por isso, Maduro é governante legitimamente eleito. Em relatório recente, o Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU informou que “os serviços secretos militares e civis do Estado venezuelano funcionam como estruturas efetivas e bem coordenadas na implementação de um plano orquestrado no mais alto nível do governo para reprimir dissidências através de crimes contra a humanidade”. Eis aí a “narrativa” que Lula pretende denunciar.
É difícil saber o que governou a decisão de Lula de afagar Maduro dessa maneira indecente. Ao fazê-lo, o presidente desqualificou o Brasil como eventual mediador entre Maduro e a oposição nas negociações para a distensão do regime. Ademais, internamente, o gesto de Lula tende a implodir de vez a fragilíssima “frente ampla” que o elegeu e com a qual prometeu governar, algo incompreensível diante da necessidade premente de construir governabilidade.
Nada disso parece importar para Lula. Em seus delírios, a Venezuela voltará a se beneficiar de vultosas obras de infraestrutura financiadas pelo Brasil, como se o Ministério da Fazenda não estivesse catando moedas no vão do sofá para fechar as contas. Lula também promete ajudar a Venezuela a integrar os Brics. Como se sabe, Rússia e China, junto com autocracias como Irã, Turquia e Arábia Saudita, planejam transformar esse grupo econômico de emergentes em um clube geopolítico antiocidental. A julgar pelo obsceno discurso de Lula, é uma narrativa que faz brilhar os olhos do chefão petista, que parece sonhar acordado com o dia de sua consagração como grande líder desse tal “Sul Global”.