Ultracatólica, reconhecida em vida como uma pessoa "de virtudes" e chamada de "redentora" por ter promulgado a lei da abolição dos escravizados, a mulher que herdaria o trono brasileiro caso a República não houvesse sido proclamada em 1889 é objeto de um pedido formal de reconhecimento de santidade que tramita na Arquidiocese do Rio de Janeiro desde 2011.
Tal solicitação foi apresentada à Igreja pelo jornalista Hermes Rodrigues Nery, católico conservador e coordenador do Movimento Legislação e Vida, e tem apoio de diversos monarquistas brasileiros.
A reportagem procurou Nery e deixou recados para ele por meio de suas redes sociais nos últimos dias, mas ele não retornou aos pedidos de entrevista.
Oficialmente, a Arquidiocese do Rio evita se posicionar. Por meio de sua assessoria de imprensa, a instituição afirma que há um "início de conversas sobre a possibilidade" de um processo que resulte em beatificação e, posteriormente, em canonização. Sem previsão, entretanto, de agilidade no andamento.
Fontes ouvidas pela reportagem afirmam que paira um certo desconforto pela temática. Uma parcela significativa do movimento negro contemporâneo questiona o papel atribuído à princesa na abolição, alegando que essa narrativa tira o protagonismo das lutas dos próprios negros escravizados e ex-escravizados.
Além disso, há uma preocupação com o crescimento de discursos monarquistas na atualidade, em meio à polarização ideológica política que divide o Brasil. Não à toa, a própria eleição de Jair Bolsonaro estimulou que o pedido feito em 2012 desse os primeiros passos.
Oficialmente, contudo, essa demora ocorreu não pelo fator político, mas pela fila natural do escritório da Causa dos Santos ligado à Arquidiocese do Rio. "São poucas pessoas trabalhando e há outros processos em andamento", explica padre João Claudio Loureiro do Nascimento, membro do escritório, onde atua como perito. "Em 2019, começou o trabalho de pesquisa, infelizmente interrompido por conta da pandemia."
Com a disseminação da covid-19, ele conta que o fechamento de arquivos, bibliotecas e outras instituições do tipo se tornou um obstáculo para a produção desse dossiê.
O padre informa que só agora, com a flexibilização das regras sanitárias, está havendo uma retomada do processo.
Esse material é o primeiro passo em um processo de reconhecimento de santidade.
Normalmente, é aberto pela diocese onde o candidato aos altares morreu — como a princesa passou os últimos anos da vida exilada na França, onde morreu há cem anos, em 14 de novembro de 1921, a arquidiocese do Rio solicitou uma transferência de foro.
O dossiê biográfico deve apontar para as virtudes do candidato a santo.
Os pesquisadores precisam compilar escritos de autoria do mesmo e também tudo o que se documentou a respeito dele.
Nos casos em que há pessoas vivas que conviveram com o postulante, elas também podem ser entrevistadas.
Uma vez terminada essa fase, cabe ao bispo responsável aprovar ou não a continuidade. Só então o processo é remetido ao Vaticano, a quem cabe, depois de novas análises, inclusive de possíveis milagres, declará-la beata e, mais tarde, santa.
No caso de Isabel, a política mundana conta tanto quanto a fé. Há quem acredite que uma eventual reeleição de Bolsonaro significará um firme andamento da causa, em razão de pressões de parte de sua base conservadora. Se houver uma guinada à esquerda, as pesquisas biográficas já realizadas poderiam ser arquivadas. Mas no momento são especulações.
O que se sabe, contudo, é que muito trabalho já foi feito. Isso significa que mais de 80 mil documentos sobre a vida da princesa foram analisados por uma comissão e esse conteúdo está sendo transformado em um imenso dossiê. Que, então, precisará ser submetido ao cardeal arcebispo do Rio, dom Orani Tempesta.
"É um trabalho complexo, que requer estudos de longo prazo. Trata-se de um vulto histórico brasileiro e precisamos também contemplar a vida privada dela", argumenta padre Nascimento.
Coautor do livro Alegrias e Tristezas: Estudos Sobre a Autobiografia de D. Isabel do Brasil (Linotipo Digital Editora) e fundador do Instituto Cultural D. Isabel A Redentora, o historiador e advogado Bruno da Silva Antunes de Cerqueira ressalta que a princesa, ainda em vida, chegou a ser chamada de "Santa Isabel Brasileira", em um discurso político ocorrido na Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos, no centro do Rio, em celebração à abolição.
A igreja era um reduto do movimento negro abolicionista da época.
"Ainda viva, ela era considerada por muitos católicos, inclusive clérigos e freiras, uma santa. Os que conviviam com ela diziam que era uma pessoa muito boa. Era uma fama que ela tinha", comenta Cerqueira. "E dona Isabel não investia nisso como marketing pessoal."
"Na real, ela tinha uma personalidade autoritária. E a mesma coisa se dá com o catolicismo dela: era ultracatólica e, mesmo que por criação liberal defendesse que as religiões poderiam conviver, claramente era muito engajada na crença de que a Igreja Católica era o canal de salvação de todos os homens", explica o historiador.
Biógrafo com diversos livros publicados sobre personagens da família imperial brasileira, o pesquisador Paulo Rezzutti atesta que há registros históricos de que a "veneração à imagem de Isabel começou ainda enquanto ela era viva e perdurou por muitos anos entre os negros".
"Hoje em dia, esse culto ainda persiste, mas em outros círculos da sociedade, como entre os membros católicos do movimento monarquista brasileiro", ressalta ele.
"A mobilização em reconhecê-la como santa já existia desde que ela era viva. Sua vida era profundamente fundamentada pela fé", acrescenta padre Nascimento. "Logo após a morte, esse reconhecimento foi crescendo."
Rezzutti explica que são três os pontos utilizados para justificar o processo de beatificação de Isabel. O primeiro é a chamada "prova de virtude em grau heroico".
"No caso dela, seria sua defesa em apressar e fazer passar a Lei Áurea, ainda polêmica em 1888 devido à falta de indenização que parte dos escravocratas exigia pela desapropriação, por parte do Estado brasileiro, do que consideravam como sendo sua propriedade", afirma.
Isso se deu porque Isabel trocou o então presidente do Conselho de Ministros por um nome favorável à lei de libertação imediata e sem indenização.
"Enfrentou, assim, parte da elite econômica brasileira", diz Rezzutti.
"Numa conversa posterior com o ministro anterior, ele a parabenizou e disse que ela tinha vencido a questão mas perdido o trono. E ela respondeu que 'se mil tronos ela tivesse, mil tronos daria para a libertação dos negros'. Efetivamente o império durou pouco mais de um ano e ela nunca assumiria o trono."
Além disso, o biógrafo lembra que ela "foi cultuada durante muitos anos por parte do movimento negro ligado à religião católica".
"Ela era vista como uma santa por tê-los libertado do cativeiro. Isso persistiu, por décadas, após a morte da princesa em 1921", afirma.
A esses pontos se soma um terceiro, que também deve constar desse dossiê: são relatos de possíveis milagres, de pessoas que dizem ter sido curadas de maneira inexplicável à luz da medicina depois que recorreram à princesa Isabel.
Tudo, claro, precisará ser futuramente analisado por peritos do Vaticano.
Também há o peso político da família imperial brasileira junto à cúpula do catolicismo naquela época.
"É importante lembrar sua estreita ligação com a Igreja Católica, com a causa mariana e com a doutrina social da Igreja, tanto antes da Proclamação da República quanto após sua expulsão, com a família, do Brasil", conta Rezzutti.
"Ela, enquanto presidente regente, substituindo o pai em 1877 no trono, escreveu oficialmente o papa Pio 9°, único sua voz aos bispos brasileiros pela canonização do padre José de Anchieta."
Já no exílio, Isabel mobilizou o episcopado brasileiro para que, em 1900, fosse produzido no país e remetido ao papa um abaixo-assinado solicitando a definição do dogma da Assunção da Santíssima Virgem.
"Com isso, ela queria demonstrar que o Brasil era devoto à causa mariana", enfatiza o pesquisador.
No pedido submetido à diocese do Rio pelo jornalista Nery, ele cita alguns casos objetivos. Um deles seria o fato de que a princesa havia feito a promessa de limpar pessoalmente a capela de Nossa Senhora Aparecida, então no município de Guaratinguetá — hoje Aparecida.
Em novembro de 1884, Isabel foi até lá cumprir a promessa. Subiu as escadarias e varreu toda a igrejinha. Ela teria mantido o hábito, também ajudando a limpar igrejas em Petrópolis.
Antes, em 1864, a princesa havia demonstrado sua predisposição abolicionista, intercedendo pela libertação de dez escravizados palacianos — oito deles, criados pessoais dela, dentre os quais uma lavadeira e uma engomadeira.
Por fim, a boa relação com a Santa Sé. Em reconhecimento pelos benefícios humanitários da Lei Áurea, ela foi condecorada pelo papa Leão 13 com a Rosa de Ouro, uma alta homenagem que a Igreja reserva a leigos ilustres desde 1096.
Para o historiador Bruno da Silva Antunes de Cerqueira, a veneração a Isabel também é "uma paga" pela abolição e pelo exílio.
"O golpe da [Proclamação da] República é militarista, mas vai ser favorável aos fazendeiros. Eles vão massacrar o abolicionismo e o isabelismo", diz. "Então essa ideia ganhou espaço nas famílias da nobreza e nos negros [diretamente beneficiados]. O isabelismo se tornou uma coisa de elite e de gente muito humilde."
"Houve um esforço do Estado [com a República] de apagar a memória de dona Isabel e da família imperial. Mesmo assim, grupos fechados mantiveram a chama. E estamos descobrindo as informações em meio a tudo isso", pontua padre Nascimento.
Segundo Cerqueira, o que se viu portanto foi um aumento do culto à princesa como "uma senhora virtuosíssima".
Como se a distância, provocada pelo exílio, fosse um fator que ajudasse a favorecer o mito.
"Como ela foi proibida de voltar ao Brasil, os isabelistas não se conformaram com isso. Passaram a incentivar que os católicos vissem nela uma santa, uma pessoa que se preocupou em só fazer o bem. E que teria sido extraditada por isso", diz o historiador.
"Essa narrativa se fortaleceu muito", pontua. Ele cita casos de fiéis católicos manifestando essa devoção, como no caso de uma devota que afirmava definir a imagem de Nossa Senhora Aparecida como "a princesa Isabel lá do céu".
Padre Nascimento, o perito do escritório da Causa dos Santos do Rio, lembra que o processo de Isabel só faz sentido porque há esses indícios de devoção popular.
"A Igreja não fabrica santos. O que fabrica santos é a própria santidade do indivíduo", ressalta. "E quem reconhece a santidade de uma pessoa é o povo. É o povo que cria essa devoção e a fama de santidade vai se espalhando."
Ele ressalta que todo o processo vem sendo feito cumprindo minuciosamente os ritos. "Estão sendo fundamentadas as virtudes teologais dela, ou seja, a fé, a esperança e a caridade", explica. "Vamos ver na vida de dona Isabel argumentos que possam fundamentar [essas virtudes]. A própria vida dela é que vai ser o argumento."