A defesa dos estudantes afirma, em nota, que a universidade, que deveria ser um local de livre debate de ideias, persegue os contrários a sua política, "inclusive recorrendo a artifícios inconstitucionais como alguns dos incisos do regimento disciplinar ditatorial da USP".
"Entendemos que esse processo é uma tentativa de 'fazer exemplo' e barrar movimentos pró-Palestina da USP que buscam denunciar o genocídio em curso e questionar a narrativa de que se trata de uma guerra entre dois lados equilibrados", segue o texto.
Tudo começou com uma assembleia do Centro Acadêmico Favo 22, de ciências moleculares, realizada em 23 de outubro do ano passado. Na ocasião foi distribuído um informe sobre a recém-iniciada guerra entre Israel e o Hamas. A ação foi motivada por mensagens em grupos do curso pedindo doações ao Exército do Estado judeu.
O texto dos estudantes chamava a ofensiva do grupo terrorista ao sul de Israel -que marcou o início do conflito recente, em 7 de outubro de 2023- de "histórica" e dizia que o país governado por Binyamin Netanyahu pratica "genocídio" e uma política "fascista, colonialista e racista" na Faixa de Gaza, território habitado por palestinos e comandado pelo Hamas.
A repercussão foi negativa, e o centro acadêmico divulgou nota pedindo desculpas e afirmando não ter redigido o informe. Isso, segundo a entidade, teria sido feito por outro grupo da USP, o Estudantes em Solidariedade ao Povo Palestino, que move uma campanha pelo fim de convênios com universidades israelenses.
"[...] Repudiamos os métodos e a linha político-ideológica reforçada pelo grupo Hamas, que é categoricamente antissemita e de extrema-direita", esclareceu o Favo 22.
Tal explicação foi insuficiente para a coordenadora do curso de ciências moleculares. Merari de Fátima Ramires Ferrari encaminhou um relatório sobre a assembleia e propôs punições administrativas aos envolvidos.
Ela argumentou que os envolvidos feriram o código de ética da universidade e a própria Constituição Federal ao supostamente propagar discurso de ódio.
O pró-reitor adjunto de graduação da USP, Marcos Garcia Neira, aceitou a justificativa de Ferrari e, em 30 de novembro, determinou a instauração de um processo contra cinco estudantes. Dois deles são acusados de escrever o informe, e três são suspeitos de disseminar discurso antissemita nas redes sociais -um afirma nem estar relacionado ao caso em questão.
De acordo com Neira, caso seja constatado que condutas investigadas são verdadeiras, os estudantes ficam sujeitos a "sanção suspensória ou sanção expulsória previstas no artigo 249 do Regimento Geral da USP".
O trecho evocado por ele foi aprovado em 1972, durante a ditadura militar, e proíbe a prática de "ato atentatório à moral ou aos bons costumes", a perturbação aos "trabalhos escolares" e ainda "a manifestação ou propaganda de caráter político-partidário, racial ou religioso".
Uma comissão formada por Gustavo Ferraz de Campos Monaco, professor da Faculdade de Direito e ex-procurador-geral da USP, José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres, professor da Faculdade de Medicina, e Ianni Régia Scarcelli, professora do Instituto de Psicologia, foi convocada para julgar o caso.
Todos os estudantes acusados foram ouvidos. O processo estava paralisado desde julho deste ano, e os envolvidos acreditavam em seu arquivamento.
Porém, nesta terça-feira (22), a pró-reitoria de graduação encaminhou email intimando as testemunhas de defesa à prestação de depoimentos em 14 de novembro. Depois disso, o rito indica uma decisão do colegiado.
Fernando Lottenberg, comissário da OEA (Organização dos Estados Americanos) para o monitoramento e combate ao antissemitismo, opina que "a ação dos dirigentes da USP é exemplar, demonstrando a importância de as universidades criarem mecanismos para o recebimento, apuração e determinação de sanções relacionadas às denúncias de antissemitismo ou qualquer outro tipo de disseminação do discurso de ódio".
"Infelizmente, estamos enfrentando um momento de perigoso e crescente número de casos de antissemitismo, inclusive dentro das universidades, locais onde a intolerância e o desrespeito à diversidade não deveriam ter qualquer tipo de espaço, mas acabam ali também encontrando terreno fértil."
LEIA A ÍNTEGRA DO INFORME QUE ORIGINOU AS DENÚNCIAS
"Na manhã de sábado [7 de outubro de 2023], forças palestinas iniciaram uma ofensiva histórica contra o colonialismo israelense a partir da Faixa de Gaza, região palestina que vem sendo ocupada por Israel há 16 anos de maneira colonial, baseada em assentamentos coloniais em terras e cidades palestinas roubadas. As forças armadas engajadas na operação Tempestade de Al-Alqsa são várias, lideradas pelo Hamas, a força mais organizada e bem estruturada, apesar de controversa entre o povo palestino. Todas as forças políticas palestinas mantêm um contato básico para garantir unidade militar.
A ofensiva foi histórica e deixou o exército israelense paralisado nas primeiras horas, nas quais diversos assentamentos foram retomados, vários militares israelenses foram feitos prisioneiros. Assim que se iniciou a retaliação da parte de Israel, com bombardeios indiscriminados em áreas civis, como se pode inclusive verificar em vídeo postado nas redes sociais do primeiro-ministro de Israel, 250 palestinos foram mortos rapidamente. Os bombardeios covardes continuam até agora e se intensificam, com mais de 750 palestinos mortos, desses, quase 200 são crianças.
Além disso, o ministro da defesa israelense, declarando que os palestinos são animais humanos que seriam tratados como tais, anunciou o corte do abastecimento de água, energia elétrica e combustível para a Faixa de Gaza, que é, há 16 anos, uma prisão murada a céu aberto cujo fluxo de bens e pessoas é completamente controlado por Israel.
Esse tipo de cerco, além de ilegal perante o direito internacional, impede o funcionamento dos serviços de saúde, hospitais na Faixa de Gaza, enquanto os bombardeios aumentam. É importante lembrar que essa ofensiva da resistência palestina ocorreu em resposta à dessecação da mesquita de Al-Aqsa e da agressão de mulheres envolvidas no funcionamento da mesquita. Além disso, nos últimos meses Israel vem escalando o conflito com reiteradas tentativas de invasão a Jenin, terceira maior cidade da Cisjordânia e foco importante da organização da luta armada palestina.
Os bombardeios estão perto da fronteira com o Egito e Israel já bombardeou o Líbano, que retaliou e mobilizou-se para uma resposta militar de maior escala.
A mídia brasileira, alinhada com o bloco imperialista estadunidense, vem focando numa campanha de desinformação, entrevistando brasileiros que moram lá contando histórias pessoas de familiares ou amigos que sofrem com o conflito, tentando pegar as pessoas no emocional e tentando gerar ódio aos palestinos, desumanizando-os e os caracterizando de terroristas que matam civis israelenses sem motivo.
É importante frisar que não há civis em Israel, menos ainda na Faixa de Gaza e na Cisjordânia, regiões de assentamentos coloniais mais recentes, extremamente militarizados para garantir o roubo da terra palestina. Todo israelense, ao completar 18 anos, tem de servir no exército por quase três anos (2 anos e 8 meses). Dessa maneira, considerando a situação colonial e que todo israelense, homens e mulheres, são militares, o que temos é uma população não civil militarizada habitando terras roubadas. Não há, portanto, civis em Israel, como não havia civis franceses na Argélia no século 20 nem civis franceses no Haiti no século 18 na revolução haitiana.
Para contextualizar o genocídio, fascista, colonialista e racista que Israel pratica, antes do início desse conflito, 200 palestinos haviam sido assassinados por Israel esse ano e, nos últimos 21 anos, Israel assassinou em média uma criança palestina a cada três dias. O exército israelense é um dos mais ricos e bem equipados do mundo, recebendo doações bilionárias dos EUA todos os anos.
É o papel de todo ser humano que se importa com a opressão e a exploração se colocar contra o projeto sionista, contra o colonialismo israelense, contra o Estado de Israel, fundado no genocídio e no colonialismo. É fundamental que nos posicionemos em defesa da luta e da vida do povo palestino."