Intensificou-se nos últimos anos nos Estados Unidos (e também no Brasil) um debate público sobre como deve ser a orientação do jornalismo profissional.
Uma corrente segue em defesa de um dos cânones centenários da profissão: a busca pela objetividade, espaço para versões divergentes e explicação dos fatos de maneira obsessivamente imparcial. Nesse sistema, o objetivo é oferecer ao consumidor de notícias a versão mais completa dos fatos, sem viés nem prevalência de opiniões.
Um 2º grupo pensa diferente. Avalia que fracassou no século 21 o método jornalístico tradicional de busca da objetividade. Argumenta que a cacofonia criada pelo oceano de opiniões e informações na internet mais confunde do que explica. Nesse cenário, ouvir todos os lados relacionados a um fato transforma-se em exercício inócuo. Às vezes resultaria em dar uma falsa equivalência a verdades e mentiras. Por essa razão, há jornalistas e veículos de comunicação pregando a necessidade de tomar um lado, assumir posições e, assim, defender o que consideram valores democráticos –ainda que opiniões possam ser desprezadas e algumas personagens de uma notícia, ignoradas.
Esse debate esquentou no fim de 2023. O jornalista norte-americano James Bennet, ex-editor de Opinião do jornal The New York Times e atualmente articulista da revista britânica The Economist, publicou em 14 de dezembro um extenso artigo de opinião (link para assinantes) no qual sustentava que o mais influente jornal do mundo ocidental havia se tornado “iliberal”.
O publisher do New York Times, A. G. Sulzberger, rejeitou a crítica em nota publicada no mesmo dia 14 de dezembro (PDF – 39 Kb) na página corporativa do diário, mas não rebateu os principais argumentos de Bennet. Disse de maneira quase lacônica que “princípios apenas não são suficientes”.
O iliberalismo é “uma doutrina, sentimento ou atitude de quem se opõe à liberdade, especialmente no domínio político”, de acordo com o Dicionário “Houaiss”. No “Aurélio”, é “sistema, opinião ou sentimento contrário ao liberalismo político”.
No texto “When the New York Times lost its way” (“Quando o The New York Times se perdeu”, em português), com 17.162 palavras, Bennet relata de maneira minuciosa o processo que resultou em seu pedido forçado de demissão do jornal, em junho de 2020, ainda que demonstre um certo tom de ressentimento em trechos que seriam dispensáveis. Segundo ele, sua saída foi consequência da pressão feita por jornalistas do próprio veículo, de leitores identificados como “progressistas” ou de esquerda e por decisão do dono da publicação.
A demissão se deu após a editoria de Opinião então comandada por Bennet (e com cerca de 100 jornalistas) ter publicado, em 3 de junho de 2020, um artigo de opinião do senador republicano pelo Arkansas Tom Cotton (link para assinantes). O texto foi considerado impróprio por leitores, por jornalistas do New York Times, pelo Sindicato dos Jornalistas de Nova York, por simpatizantes do Partido Democrata e por ativistas de esquerda. Bennet relata que Sulzberger cedeu à pressão e o coagiu para pedir demissão.
Hoje, quem entra no site do New York Times para ler o artigo de 2020 do senador Cotton se depara, no início, com uma explicação do jornal (PDF – 113 Kb) dizendo que o conteúdo “ficou fora” dos padrões do veículo e “não deveria ter sido publicado”. Mas o artigo segue disponível (link para assinantes).
Em seu texto, Bennet descreve uma tendência que ganha tração em parte da mídia dos EUA, inclusive no New York Times: a restrição do debate público ao barrar, cada vez mais, vozes que não estejam alinhadas a ideias do centro para a esquerda no espectro político.
O texto de opinião assinado pelo senador Cotton, “Send in the troops” (“Envie as tropas”, em português), defendia em junho de 2020 o uso da Guarda Nacional (uma força federal militar dos EUA) para conter crimes e ações violentas praticadas por vândalos e saqueadores que se misturavam aos protestos realizados em diversas cidades norte-americanas depois do assassinato de George Floyd (1973-2020), um homem negro, por policiais brancos. Era o auge dos atos do movimento “black lives matter” (“vidas negras importam”).
Diferentemente do que o sindicato, jornalistas e o próprio New York Times disseram à época a respeito do artigo, o senador não pregou o envio de tropas para reprimir qualquer manifestação. Cotton defendeu que o reforço era necessário em locais nos quais forças policiais não atuavam para manter a ordem. Diferenciou quem se manifestava de maneira pacífica dos que praticavam vandalismo.
No dia em que saiu o artigo de Cotton, já havia registros de descontrole em várias cidades nos EUA. Em Nova York, por exemplo, houve saques e destruição de patrimônio. Em Las Vegas, um policial havia sido atingido por um tiro na cabeça. Em St. Louis, 4 policiais foram baleados quando tentavam impedir manifestantes de jogar pedras e espalhar gasolina.
O texto de Cotton falava da necessidade de conter esses atos de violência especificamente –quando policiais nas cidades não conseguiam cumprir essa missão.
Poderia ser exagerado chamar militares federais naquele momento? Seria uma política inadequada ou precipitada? Há argumentos nesse sentido. Mas o ponto é outro: alguém deve ter o direito de expressar esse tipo de opinião? Esse é o debate sobre a prática do jornalismo nos EUA (e, em certa medida, também no Brasil).
Eis alguns trechos do artigo do senador, traduzidos para o português e com palavras marcadas em negrito pelo Poder360:
“Algumas elites desculpam essa orgia de violência no espírito ‘radical chique’, classificando os atos como uma resposta compreensível à morte injusta de George Floyd. Essas desculpas baseiam-se numa revoltante equivalência moral entre desordeiros e saqueadores e manifestantes pacíficos e cumpridores da lei. Uma maioria que procura protestar pacificamente não deve ser confundida com bandos de malfeitores”.
[…]
“…os tumultos não têm nada a ver com George Floyd, cujos parentes enlutados condenaram a violência. Pelo contrário, os criminosos niilistas procuram simplesmente os saques e a emoção da destruição, com militantes radicais de esquerda, como os ‘antifas’ [militantes do chamado “movimento antifascista”], infiltrando-se em marchas de protesto para explorar a morte de Floyd para os seus próprios fins anárquicos”.
[…]
“Acima de tudo, uma coisa irá restaurar a ordem nas nossas ruas: uma esmagadora demonstração de força para dispersar, deter e, em última análise, dissuadir os infratores da lei. Mas a aplicação da lei local em algumas cidades precisa desesperadamente de apoio, enquanto políticos delirantes noutras cidades recusam-se a fazer o que é necessário para defender o Estado de direito”.
O artigo saiu em 3 de junho de 2020. Na sequência das reações, 2 dias depois, veio a nota do New York Times, em 5 de junho. Foi um exercício de arrependimento. O jornal praticou quase uma autoflagelação pública por ter ousado publicar uma opinião conservadora que estava baseada no que permite uma lei conhecida como Insurrection Act.
Presidentes como Dwight Eisenhower, John Kennedy, Lyndon Johnson e George H.W. Bush usaram no passado a Guarda Nacional para manter a ordem com base no Insurrection Act.
O New York Times sucumbiu diante do que chamou de “fortes críticas de leitores e colegas” do próprio jornal. Disse que, embora os argumentos do senador fizessem parte do debate público daquele momento, a situação era de “vida ou morte”. Jornalistas disseram que se a Guarda Nacional fosse chamada para reprimir criminosos, as vidas de profissionais de mídia também estariam em risco quando estivessem presencialmente trabalhando para relatar o que se passava nas manifestações. Não há evidências claras para sustentar essa afirmação, como não havia tampouco para Cotton afirmar que os saqueadores e arruaceiros seriam apenas os militantes “antifas” infiltrados em atos do black lives matter.
Só que a posição de Cotton foi rejeitada pelo New York Times e cancelada por parte da opinião pública. Já a suposição dos jornalistas e de seus sindicatos foi aceita –sem elementos de comprovação de que vidas de profissionais de mídia ficariam de fato em risco se houvesse uma repressão militar aos atos de vandalismo.
Ao dizer que o artigo deveria ter sido recusado, o New York Times afirmou que o processo de edição foi “apressado” e “falho” e que deveria ter passado por maior escrutínio interno.
Bennet contra-argumenta. Relata em seu texto na Economist que a análise e edição do artigo do senador demorou mais de 1 mês. O texto foi checado e discutido por sua equipe. Além disso, o jornal pediu ao autor que alterasse trechos para suavizá-los, o que foi feito. De acordo com o ex-editor, Sulzberger apoiou a publicação do artigo por entender que a opinião de Cotton tinha apoio na Casa Branca (na época, comandada pelo republicano Donald Trump) e em parte do Senado.
Ainda assim, nas discussões internas e nas críticas públicas feitas ao periódico, a narrativa que dominou foi a de que Cotton desejava reprimir de maneira generalizada (com a Guarda Nacional) manifestações antirracistas promovidas pelo movimento “black lives matter”.
Em meio aos debates sobre o texto do senador republicano, o jornalista Wesley Lowery escreveu um artigo (link para assinantes) publicado pelo New York Times em 23 de junho de 2020. Era o auge da pandemia de coronavírus e um dos momentos de grande polarização política nos EUA –pela proximidade da eleição presidencial daquele ano, que seria disputada em novembro entre o republicano Donald Trump e o democrata Joe Biden. No texto “A reckoning over objectivity, led by black journalists” (“Um acerto de contas sobre a objetividade, liderado por jornalistas negros”) Lowery, que é negro, posicionou-se contra a decisão do jornal nova-iorquino de ter publicado, dias antes, o artigo de Cotton.
Lowery é um jornalista aclamado. Já trabalhou na emissora de TV CBS e para o jornal The Washington Post. Ganhou o prêmio Pulitzer em 2016, aos 26 anos, o mais prestigiado da indústria de jornalismo nos Estados Unidos. É um dos defensores da relativização do conceito clássico de objetividade, o de ouvir todos os lados.
No seu artigo para o New York Times, ele cita o conceito de objetividade definido por outro jornalista, Alex S. Jones: “A objetividade jornalística como um esforço genuíno para ser um agente honesto quando se trata de notícias”. E que objetividade “não significa tentar criar a ilusão de justiça, permitindo que os defensores finjam no seu jornalismo que há um debate sobre os fatos quando o peso da verdade é claro”. Por fim, Jones diz que citar somente declarações de vários lados de uma notícia “apenas coloca uma voz contra a outra” e isso é “a face desacreditada da objetividade” e não a “objetividade autêntica”.
“As conversas sobre objetividade, em vez de acontecerem num vácuo virtuoso, concentram-se habitualmente em prever se uma determinada frase, um parágrafo inicial ou um artigo inteiro parecerão objetivos para um leitor teórico, que é invariavelmente considerado branco. Isto cria a própria ilusão de justiça contra a qual o senhor Jones e outros alertam especificamente”, escreveu Lowery.
No texto, o repórter relata: “Durante anos, estive entre um grupo de jornalistas tradicionais que pediram que a nossa indústria abandonasse a aparência de objetividade como padrão jornalístico desejado e que os repórteres se concentrassem em ser justos e dizer a verdade, da melhor maneira possível, com base no contexto dado e nos fatos disponíveis”.
No seu conceito do que deve ser objetividade, Lowery cita então o artigo do senador Cotton de maneira enviesada (texto em negrito marcado pelo Poder360):
“A controvérsia mais recente surgiu [quando] a seção de opinião do New York Times publicou um ensaio do senador Tom Cotton, um republicano do Arkansas, pedindo, entre outras coisas, uma ‘esmagadora demonstração de força’ por parte dos militares americanos, a fim de reprimir protestos civis em manifestações que, embora por vezes violentas, foram em grande parte constituídos por manifestações pacíficas”.
Passados mais de 3 anos da publicação do artigo de Cotton, prevalece até hoje essa descrição imprecisa sobre os fatos (narrativa essa corroborada em publicações do New York Times). Até na mídia brasileira há essa reprodução do episódio.
O jornal Folha de S.Paulo publicou um texto em 25 de dezembro de 2023 no qual menciona assim o caso de 2020: “O senador republicano Tom Cotton, do Arkansas, advogava uma resposta militar incisiva contra as manifestações antirracistas que se espalharam por várias cidades dos EUA”.
Não há menção no texto do jornal paulistano ao fato de que Cotton em seu texto diferenciava o que eram manifestantes pacíficos daqueles que cometiam crimes de vandalismo, depredando patrimônio e fazendo saques.
Em sua resposta de apenas 5 parágrafos a Bennet, o publisher do New York Times, A.G. Sulzberger, tergiversa e não rebate os argumentos apresentados por seu ex-funcionário.
Sulzberger afirma que ele e Bennet sempre concordaram sobre a importância do jornalismo independente, mas que o ex-editor constrói uma “falsa narrativa” sobre o diário nova-iorquino. Diz que há, atualmente, uma pluralidade de opiniões maior “do que nunca” no jornal, inclusive com mais vozes conservadoras e heterodoxas.
“James [Bennet] foi um parceiro valoroso, mas o ponto onde eu me separei do caminho dele foi na questão de como fazer valer esses valores. Princípios apenas não são suficientes. A execução é importante. A liderança é importante”, escreveu o publisher do New York Times.
Bennet relata que Sulzberger havia lhe pedido, quando ainda estava no jornal, que trouxesse mais vozes diferentes para a seção de Opinião. Queria os mais variados pontos de vista possíveis. Ao seguir essa premissa, o ex-editor conta que havia publicado antes do episódio com Cotton artigos contrários à ideia do uso de tropas para acabar com a violência e 1 que pedia a abolição total da polícia.
Segundo o ex-editor, jornalistas no New York Times e outros funcionários reagiram negativamente ao ensaio do senador com o argumento de que seu texto poderia persuadir leitores a apoiarem as ideias defendidas por Cotton. O sindicato dos jornalistas do jornal nova-iorquino também emitiu uma declaração em que dizia que o artigo era “uma clara ameaça à saúde e segurança dos jornalistas”.
Bennet diz que o episódio é um dos exemplos de como há uma supressão de um dos lados do debate político: a direita. Diz que a campanha para que vozes consideradas “conservadoras” ou até mesmo “radicais” não tenham espaço na mídia tradicional ignora os princípios básicos do jornalismo.
“O problema do ‘Times’ passou de um preconceito liberal para um preconceito iliberal, de uma inclinação para favorecer um lado do debate nacional a um impulso para encerrar o debate completamente. […] Isso torna o ‘Times’ muito fácil de ser rejeitado pelos conservadores e muito fácil para os progressistas acreditarem. A realidade é que o ‘Times’ está virando a publicação pela qual a elite progressista dos Estados Unidos fala consigo mesma sobre uma América que, na verdade, não existe”, escreveu Bennet.
De acordo com o jornalista, Sulzberger admitiu haver padrões diferentes para a cobertura de pontos de vista distintos:
“Um dia, quando transmiti a Sulzberger a preocupação de um conservador sobre os padrões duplos [por parte do NYTimes], ele perdeu a paciência. Me disse para informar ao conservador queixoso que as coisas eram assim: havia 2 pesos e duas medidas e ele deveria se acostumar com isso. Uma publicação que promete aos seus leitores manter-se à parte da política não deve ter padrões diferentes para escritores diferentes com base nas suas políticas. Mas eu entreguei a mensagem”.
Para Bennet, a tutela sobre o leitor tira dele a capacidade de interpretar os fatos por si só, além de não apresentar uma realidade complexa. Consequentemente, os jornais perdem credibilidade.
Tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil houve um boicote das Redações jornalísticas a Trump e ao ex-presidente Jair Bolsonaro, respectivamente. Jornais dos 2 países evitaram em alguns momentos publicar declarações dos então chefes de Estado.
Jornais brasileiros tomaram a decisão de parar de acompanhar as falas diárias de Bolsonaro no que era chamado de “cercadinho”, um local no qual repórteres tinham algum contato com o então presidente na entrada do Palácio da Alvorada. O argumento usado era que Bolsonaro atacava a mídia e os jornalistas e manipulava o noticiário ao dar declarações ofensivas e inverídicas.
Ainda que os discursos de Trump e de Bolsonaro tivessem, por vezes, informações falsas e pudessem ser considerados como críticas à democracia, o jornalismo profissional tem ferramentas para reportá-los com a devida contextualização. Para Bennet, os leitores têm o direito de saber o que seus representantes pensam e falam.
“Existem muitas razões para a ascensão de Trump, mas as mudanças nos meios de comunicação norte-americanos desempenharam um papel crítico. A manipulação de Trump e cada uma das suas mentiras políticas tornaram-se mais poderosas porque os jornalistas perderam o que sempre foi mais valioso no seu trabalho: a sua credibilidade como árbitros da verdade e mediadores de ideias, que durante mais de 1 século, apesar de todas as falhas e fracassos do jornalismo, foi um baluarte de como os americanos governam a si mesmos”, escreveu.
Houve também um crescente temor por parte de jornalistas para mencionar temas incômodos. Bennet diz que o New York Times foi lento para relatar que “Trump talvez estivesse certo quando dizia que a covid-19 teria vindo de um laboratório chinês”, ou que “fechar escolas durante tantos meses seria uma má ideia [durante a pandemia]”.
Mesmo agora, com a pandemia já praticamente tendo acabado, esses temas ainda são delicados. Jornais nos EUA e no Brasil relutam em tratar desses assuntos temendo acusações de estarem sendo negacionistas.
Perto de completar 1 ano, o 8 de Janeiro é outro episódio em que há uma narrativa preponderante na mídia brasileira sobre o que se passou há 1 ano.
Na última semana, jornais têm publicado reportagens e diversas entrevistas com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o ministro da Justiça, Flávio Dino, o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes e outras autoridades importantes da política nacional sobre o dia em que milhares de extremistas de direita invadiram e depredaram as sedes dos Três Poderes. O movimento era identificado com o ex-presidente Jair Bolsonaro.
O episódio é tratado, na maior parte das entrevistas, com a possibilidade de que os vândalos do 8 de Janeiro tinham condições de forçar um golpe de Estado contra o então recém-iniciado 3º governo de Lula. Em geral, afirma-se que as reações do Executivo e do Judiciário asseguraram e salvaram a democracia no país.
Os envolvidos nos atos violentos do 8 de Janeiro defendiam um golpe de Estado. Mas é sabido que não havia adesão a essa ideia na cúpula das Forças Armadas. O ministro da Defesa, José Múcio, disse isso algumas vezes e vocalizou essa informação recentemente, mais uma vez.
“Podia ser até que algumas pessoas da instituição quisessem, mas as Forças Armadas não queriam um golpe. É a história de um jogador indisciplinado em uma equipe de futebol: ele sai, a equipe continua. No final, me parecia que havia vontades, mas ninguém materializava porque não havia uma liderança”, disse em entrevista ao jornal O Globo em 5 de janeiro.
O tom geral do noticiário é apenas sobre “golpistas” que foram contidos pela firmeza do Judiciário e do Executivo. Quase não há registro sobre as falhas das autoridades federais que possam ter ocorrido na véspera dos atos e no dia em que o Congresso, o Planalto e o Supremo Tribunal Federal foram invadidos. Cristalizou-se também um certo consenso no establishment sobre não ser admitido a ninguém imprecar ou xingar explicitamente as instituições. No 8 de Janeiro, por exemplo, não se sabe até hoje quantos manifestantes foram presos apenas porque ficaram na Praça dos Três Poderes gritando palavras de ordem contra a democracia, mas sem depredar nada.
O ex-deputado federal e ex-ministro das Comunicações Miro Teixeira (PDT), 78 anos, é um dos maiores defensores da liberdade de imprensa e opinião no Brasil. É também uma voz dissonante sobre o caso. Para ele, “todo mundo pode chegar ali na frente e dizer que quer fechar o Congresso. Tem o direito. É pura e simplesmente uma opinião”, desde que não esteja armado. Miro foi um dos principais articuladores da derrubada da Lei de Imprensa, criada pela ditadura militar. Diz que a democracia não correu risco no 8 de Janeiro e que não houve risco de golpe apenas com os vândalos que depredaram os prédios públicos. Afirmações como essa são minoritárias neste momento em que o país lembra dos atos extremistas do início de 2023.
Bennet argumenta que “uma das glórias de abraçar o iliberalismo” é que o indivíduo acreditará estar “sempre certo” e, por isso, poderá suprimir a discordância. Bennet compara o método com a forma de agir de Trump.
“É assim que líderes republicanos razoáveis perderam o controle de seu partido para Trump e como os presidentes de universidades liberais perderam o controle de seus campi. E é por isso que a liderança do ‘New York Times’ está perdendo o controle de seus princípios”, escreveu.
Bennet aponta o motivo de o jornal ter se surpreendido com a eleição de Trump. Diz que editores mais experientes reconheceram anos após a chegada do republicano ao poder que o periódico não levou a sério a ideia de que ele poderia se tornar presidente porque não teve a capacidade de ouvir e entender os norte-americanos.
Neste sentido, Bennet argumenta que o bom repórter precisa fazer a distinção entre ser empático e simpático. “Esta não é uma distinção fácil, mas os bons repórteres aprendem a compreender e se comunicar com as fontes e com a natureza de uma ideologia tóxica sem justificá-la e muito menos defendê-la”, escreveu.
Bennet também aponta a influência das redes sociais sobre as Redações como um dos motivos para que os jornalistas abandonem a imparcialidade e adotem a defesa de lados nos debates políticos. Ressalta que muitos repórteres estão preocupados em construir uma marca própria nas redes em vez de lidar com as complexidades da profissão.
Levantamentos recentes mostram que a preferência política pessoal dos profissionais de mídia pode estar influenciando o resultado final das reportagens.
Pesquisa realizada pela Newhouse School of Public Communications, da Universidade Syracuse, no Estado de Nova York, apurou que 36,4% dos jornalistas nos EUA são simpatizantes do Partido Democrata, do atual presidente do país, Joe Biden.
Esse percentual é 10 vezes maior que os 3,4% que se declaram identificados com o Partido Republicano, do ex-presidente Donald Trump.
Essa pesquisa não tem periodicidade regular, mas vem sendo realizada desde 1971. Os 3,4% que se identificam com os republicanos em Redações jornalísticas são o menor percentual desse grupo desde quando o levantamento começou a ser produzido.
O estudo da Universidade Syracuse foi realizado de 10 de janeiro a 10 de abril de 2022, entrevistando 1.600 jornalistas nos Estados Unidos. A margem de erro é de 3 pontos percentuais.
A pesquisa faz parte do relatório “American Journalist Under Attack: Media, Trust & Democracy” (Jornalista americano sob ataque: mídia, confiança & democracia, em português). Eis a íntegra do estudo (PDF – 1 MB, em inglês).
No Brasil, um levantamento realizado pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) em 2021 mostrou que 80,7% dos jornalistas definem seu posicionamento político como de esquerda (52,8%), centro-esquerda ou extrema esquerda (2%).
Do outro lado do espectro político, só 4% dos entrevistados responderam que se identificam com ideias de direita (1,4%), centro-direita (2,5%) ou extrema direita (0,1%)Há ainda 4,7% dos jornalistas que se definem como de centro e 8,7% preferiram não informar sua posição ideológica.
A pesquisa feita pela UFSC entrevistou 6.650 jornalistas de 16 de agosto de 2021 a 1º de outubro de 2021. Para essa pergunta específica, 1.978 profissionais responderam. Eis a íntegra do levantamento (PDF – 2 MB).
Quem sumarizou esse embate sobre se o jornalismo deve estar ou não engajado com uma causa durante a apuração de notícias foi o ex-editor do jornal The Washington Post Martin Baron.
Em 2017, ele participou de um programa de TV e foi indagado sobre a relação dos jornalistas com o então presidente dos EUA, Donald Trump. A pergunta para Baron foi se o Post e o jornalismo estavam em guerra com a Casa Branca. Sua resposta foi um jogo de palavras, que funciona melhor na forma original, em inglês: “We are not at war. We are at work” (“Nós não estamos em guerra. Nós estamos trabalhando”).
O sentido subliminar da frase de Baron é que não cabe aos jornalistas empunhar bandeiras além daquela inerente à profissão: praticar bom jornalismo.
O próprio Baron mais recentemente teorizou a respeito de como os jornalistas devem se comportar no trabalho. Ele fez um discurso em 16 de março de 2023 na Universidade Brandeis. O que ele propõe, em resumo, é que o jornalismo ajuda a democracia se fizer seu trabalho da melhor forma, sem necessariamente sair dizendo que está “em defesa da democracia”.
[No Poder360, o propósito deste jornal digital deliberadamente evita falar em “defender a democracia”, mas sim em “aperfeiçoar a democracia ao apurar a verdade dos fatos para informar e inspirar”. A ideia é que ao apurar a verdade dos fatos, já há uma contribuição relevante para que a democracia seja aperfeiçoada]
Eis um trecho do que disse Baron em 2023: “Realizaremos mais lutando pela verdade que lutando por nossas teorias”. Por isso, o jornalista defende “uma investigação dos fatos tão imparcial quanto for humanamente possível”.
Baron prossegue: “Acho que nós, jornalistas, nos beneficiaríamos ao ouvir mais o público e não discursar tanto para ele, em tom de quem sabe tudo. Deveríamos ficar mais impressionados com o que não sabemos que com o que sabemos ou pensamos saber. O jornalismo se beneficiaria se tivesse mais humildade e menos arrogância […] Para aqueles que dizem hoje que a mídia precisa ser explicitamente pró-democracia, eu diria o seguinte: todo jornal para o qual já trabalhei sempre foi […] Uma das maneiras pelas quais esses veículos noticiosos protegeram a democracia foi cobrando a responsabilidade do governo e de outros interesses poderosos”.
A seguir, outros trechos do artigo de James Bennet pela revista The Economist, em dezembro de 2023: